terça-feira, 13 de abril de 2010

O caso do polvo.

Tudo começa com um delicioso convite:

- Lu, podes vir cozinhar na minha casa, sábado, pra dez pessoas?

Sem dúvida isso é uma das oportunidades mais interessantes para pessoas como eu e a Lu que gostamos de servir bem e ter liberdade de criar.

A pensar no cardápio, nunca me contento e vou logo partindo pros conceitos abstratos que surgem na minha cabeça, para as quais a Lu dificilmente não torce o nariz:

- Quem sabe um jantar thai, Lu?

- Acho ótimo, mas será que todos os convidados gostam?

:/

Às vezes fico intediada diante do gosto comum e causa urticárias no cérebro pensar como as pessoas são conservadoras e engessadas a ponto que quererem sempre comer o mesmo tipo de comida, ainda quando têm a oportunidade de experimentar - essa palavra vem me perseguindo há anos...

Chutando o balde pra longe, dei uma sugestão como se fosse a única oportunidade de me salvar da cadeira elétrica:

- Quero cozinhar polvo!

Eu sou absolutamente apaixonada pela carne branca desse bicho. A primeira vez que vi um polvo, foi uma coisa de amor incrível. Como alguém pode sentir essa sensação por um ser viscoso e nem um pouco tátil, repleto de ventosas de diversos tamanhos cobrindo o seu corpo, virado em cabeça e tantáculos, e que ainda por cima solta um desagradável líquido negro?
Não sei. Sei que foi amor à primeira garfada e depois disso, meu reino por um polvo!

Aí comecei a pensar no que poderia acompanhar um polvo...

Queria fazê-lo lentamente no azeite de oliva, depois de tê-lo cozido numa panela com água, até acertar o ponto que eu queria, nem borracha, nem farinha amanteigada.

Era quase um confit o "lugar" onde eu queria chegar.

Foi então que eu lembrei dos toques sutis que tive durante um mês com a adorável chef Helena Rizzo no Maní (http://www.restaurantemani.com.br/).

Com tantas inspirações "helenísticas", decidi parafrasear o delicioso purê de batata com wasabi que ela serve no prato Hamburguer, mas da minha maneira.

Então, eu e a Lu conversando, chegamos a conclusão de que a entrada seria um carpaccio de beterraba sobre marmelada de cebola, redução de balsâmico e lascas de parmesão: ou seja, um prato frio. Nada mais agradável do que antes de ir direto ao finalmente quente, receber uma entrada morna! Ora, ora, Eureka!! Era o POLVO com purê de batata com wasabi, levemente tépido (adoro essa palavra).


Eu já havia conseguido o que eu queria, que era convencer a Lu a sugerir um polvo como primeiro prato. Ela ligou pra cliente:

- Suzana, estou pensando em um carpaccio de beterraba, assim, assim... e um polvo. Gostam?

Estava choramingando pelos cantos quando ela me deu a notícia que me fez ganhar o dia: íamos cozinhar polvo!

EBA!!!

Bem, eu sei que estou prestando demais atenção a um ser primitivo, cefalópode, mas a minha paixão por ele fazia verter mais o que água na boca, água nos olhos.

Com o cardápio definido, a cliente pediu que o outro prato fosse cordeiro. Tudo bem, dessa vez me rendi às tradições, eu estava louca era pelo octópode, de resto, eu serviria até risoto de chuchu sem parmesão se ela pedisse.

Fomos às compras, tudo lindo maravilhoso, eu sonhando com o sabor... "depois de cozinhá-lo, numa forma deitado no azeite de oliva... coentro, gengibre, pimentas... uhm... no forno ou no fogão? ..." Fui subitamente retirada do meu estado de nirvana com a Lu dizendo que não havia polvo nos supermercados da cidade. Bem, isso não é problema, penso eu, vamos ao Mercado Público, não é? Não é. Nada do meu amigo feioso mais uma vez.

Comecei e me deseperar. Será que o meu deleite não ia ser realizado pela falta de proveduras de frutos do mar nessa cidade Alegre?? Buá buá buá! A minha cidade estava ficando cinza...

Uma São Silvestre e muitas ligações depois, descobrimos um lugar que vendia tentáculos. Só os tentáculos. Uhm, pra mim já parece ótimo.

Chegamos lá, um lugar perto do Beira-Rio, já estava começando a sentir náuseas, quando de repente, ao sair do carro percebemos: as duas tínhamos esquecido as carteiras em casa. Quase não consegui acreditar, parecia que o polvo estava fugindo de mim. Mesmo sem nenhum tostão, entramos e escolhemos nossos pacotes cheios de tentáculos, e deixamos encomendados para um motoboy entregar no dia seguinte.

Dormi aquela noite pensando em lindas "pernas" de polvo.

Era sábado, o dia do jantar e eu acordei pensando se ia demorar muito para que chegasse o cara de moto. Acredito que estou ficando cada vez mais obcecada por esse bicho. Queria por que queria que ele já estivesse ali, e pensar em tirar do saco, descongelar suas partes moles, limpar uma por uma das suas ventosas me dava uma sensação extrema de bem estar. (?)

Achei que dois pacote com dez "pernas" em cada ia ser pouco. Liguei e pedi mais um, afinal, para mim, polvo nunca é demais.

Bateram na campainha. Era ele. :D

Fiquei eufórica, louca para metê-lo na panela com limão e depois temperá-lo como eu havia imaginado.

Bem, pra encurtar a história, o nosso jantar todo ficou lindo, até o cordeiro que eu mesma assei e fiquei virando com todo o carinho - acho que na tentativa de não deixar transparecer para eles, os cordeiros que fariam parte do prato principal, que eu estava dando mais importância ao ser com as pernas na cabeça - ficou interessantíssimo acompanhado de figos recheados e uma musseline de grão-de-bico.

Chegamos na casa da Suzana e após tudo preparado, eu fiquei sabendo que alguns comensais, incluindo a dona da casa não gostavam de polvo! Eu quase não acreditei. Ele estava tão lindo naquele tom roxo, combinando com a minha touca, também roxa, embebido por azeite de oliva deliciosamente aromatizado com tanto carinho... sniiiff...

Mas tudo bem, pensei, buscando em mim a confiança que o polvo havia me dado. Tínhamos passado por tantas coisas, não ia ser agora que logo eu ia decepcioná-lo. Não mesmo.

Servi as quenelles tépidas de batata com wasabi, arrumei delicadamente cada tentáculo no prato, cuidando para que sua linda e frágil "roupa" roxa de festa não fosse maculada por uma pinça de carnes, e o tomei nas mãos, desejando que aquelas pessoas o soubessem valorizar assim como eu sabia, despejando sobre cada um deles um pouco de flor de sal, para realçar o sabor.

Esperançosa, ajeitei cada cubinho de azeitona, cada tomatinho-uva confit de ambos os lados do polvo, verti sobre o prato o azeite de manjericão, decorei com as folhinhas de coentro e mais manjericão, e por cima do purê com wasabi, um filete de sel rouge que a Lu trouxe da França.


Aquilo havia sido esperado durante dias e noites, eu sonhara com o polvo, ali, sendo um figurante na noite do cordeiro protagonista, cercado de azeitonas negras, aromas e sabores.

Um verdadeiro delírio. E eu suando frio a pensar que podia alguém deixar de comer o polvo tão lindo.

Quando a menina que havia sido contratada para fazer o serviço abriu a porta que dava para a sala de jantar, subitamente tive uma vertigem e ouvi vozes elogiando o prato.

Não tive certeza se era uma alucinação, e perguntei à ela o que estavam achando os comensais. Para a minha surpresa e deleite, todos estavam amando, e tinha gente que queria repetir.

Quase pulei de felicidade, o polvo finalmente havia sido reconhecido!!!

Senti como se eu fosse parte daqueles lindos tentáculos apreciados com um pinot noir que estava sendo servido.

O jantar todo correu bem, e quando voltaram os pratos, eu soube que até a dona da casa havia gostado muito do bicho estranho.

Voltei pra casa me sentindo feliz da vida, com a certeza de tinha acertado em sugerir quebrar os velhos hábitos e de ter dado ao polvo um novo status e uma nova chance de se sentir gostado.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Curso Food Experience

Estive ontem com Diogo Carvalho, um dos Destemperados, muito gentil por sinal, conversando sobre um novo projeto que eu e Lu Davis temos em duas cabeças para quatros mãos. Em breve mais notícias about this...

Aí surgiu esse curso denominado como Food Experience, elaborado pelo pessoal da Perestroika + Destemperados, que vem pra abrir a cabeça sobre a experiência de comer.

Um trecho copiado do site da Perestroika:

Food Experience: Perestroika + Destemperados

O conceito de Food Experience vai muito além do prato. Ele aborda todo o ambiente, todo o clima, toda a sensação que acompanha a comida numa experiência gastronômica. Por isso, esse não é um curso de gastronomia tradicional. Não vai falar de receitas. Nem do passo-a-passo na cozinha.

O Food Experience apresenta uma dimensão maior da Gastronomia, abordando fatores decisivos para a satisfação no final de uma refeição.

O curso é novo, mas já estreia muito bem recomendado, pois é apadrinhado por Roberta Sudbrack, eleita “Chef do Ano” pelo Guia Quatro Rodas em 2009. O programa teve a curadoria do Destemperados e apoio da revista Prazeres da Mesa, o que garantiu um time de professores de padrão internacional nos encontros.

Juntando tudo isso à metodologia criativa da Perestroika, o Food Experience surge como uma oportunidade imperdível para chefs de cozinha, donos de restaurantes, estudantes de gastronomia e membros de confrarias.


Professores

Diogo Carvalho - Coordenador do curso Food Experience. Diretor e um dos criadores do Destemperados.

Roberta Sudbrack - Eleita Chef do Ano 2009 pelo Guia Quatro Rodas e proprietária do Roberta Sudbrack, um dos melhores do mundo pela Food&Wine.

Ricardo Castilho - Diretor Editorial da Revista Prazeres da Mesa.

Ricardo Freire - Criador do mais importante blog de viagens do país, o Viaje na Viagem.

Belarmino Iglesias Filho - Diretor do Grupo Rubaiyat.

Diego Fabris - Diretor e um dos criadores do Destemperados.

Edu Passarelli - Mestre cervejeiro e Gastrônomo.

Mário Geisse - Enólogo chileno Diretor da Casa Silva e fundador da Cave de Amadeu: um dos precursores do espumante no Brasil.

Marco Danielle - Artista Vinheteiro e Proprietário da Vinha Solo.

Tatiana Simões e Daniela Hispagnol - Diretoras do Gouté: Gourmet Travel Experiences.

Guilherme Studart - Economista e autor do Anuário Rio Botequim.

Dânio Braga - Chef-proprietário do Locanda della Mimosa e idealizador da Associação dos Restaurantes da Boa Lembrança.

Eduardo Maya - Mentor do festival “Comida Dibuteco”.

Helena Rizzo - “Chef do Ano 2009” pela Veja SP e chef do Restaurante Maní.

Programa

O curso será dividido em quatro módulos:

Módulo 1: Food Experience
• O que é Food Experience?
• Gastronomia Contemporânea
• Curiosidade gastronômica: o que não mata, informa
• Cultura de Boteco
• Prato da Boa Lembrança

Módulo 2: Business
• O que é o “ Destemperados”?
• O nascimento do Grupo Rubaiyat e receitas para o sucesso
• Roteiros Gastronômicos
• Quando o menos é mais: os pés-sujos é que lucram

Módulo 3: Bebidas
• A glamourização do vinho nacional e seu diferencial
• Carta de cervejas: e isso combina com o meu prato?
• Vinhos Orgânicos

Módulo 4: Chefs
• Os sabores da cozinha orgânica
• A Saga Sudbrack

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Poizé, muito massa!

Acho bom se alguém se interessar, que ligue logo e se inscreva, por que o curso abriu com 28 vagas e pelo jeito não tinha mais muitas disponíveis, mas eu já garanti a minha.

Beijo!


quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Julie & Julia, blogs e manteiga




Na busca por informações sobre menu de cafeteria para fazer um trabalho, fui até o Bourbon shopping com uma amiga e entramos na livraria Cultura. Sabia que havia uma sessão do filme que queríamos assistir, Julie & Julia, com a Meryl Streep. Tinha lido que não era um filmaço, como constatei, mas o tom água com açúcar me conquistou por certa indentificação com a história.

Saímos da livraria correndo para o cinema.

Minha amiga ainda disse "Nada de comprar pipoca, por favor!"

Disse que não pegava bem comer pipoca no cinema, que fazia barulho, que era gordurosa e blá blá blá... Ok, não iria provocar a fúria dela só por causa de um saco de pipoca deliciosa e cheia de manteiga rançosa, imagina!

Entramos no cinema e dei de cara com o Luis Fernando Veríssimo, adivinhem, comendo pipoca.


Ok!! Sentamos na fileira atrás dele.

O filme, queridinho, me tocou primeiro por tratar de um assunto que hoje toma conta da maioria dos meus pensamento: comida. Outro motivo, é que no filme, Julie, a garotinha de trinta que divide o papel principal com Julia, a Meryl, é uma funcionária pública sem grandes motivos pra se sentir viva, e decide fazer um blog. Julie queria ser escritora. Decide começar a cozinhar todas as 524 receitas do livro de Julia Child de 1961 e postar no blog.

Eu sei bem como é difícil assar um lindo frango sem que a pele se esturrique. Ou como parece impossível desossar um pato. Mas o que me parece mais estranho, é a minha incapacidade de terminar algumas coisas que começo, como este blog. Ocupadíssima entre trabalhos, receitas, testes e pesquisas, às vezes fica complicado parar e escrever ou postar alguma coisa interessante. A garotinha do filme também, então resolveu estipular um prazo pra que o blog fosse algo real. Durante um ano ela cozinhou todas as receitas do livro de Julia e postava tudo no blog. O resultado: ela virou escritora.

Ok, eu não quero ser escritora. Acho que já quis um dia, mas se for pra ser isso, será como consequência da minha profissão, que sinto que é o que eu farei por loooooongos anos. Mas o fato é que devo me esforçar mais para sentar em frente ao computador por alguns segundos e postar com maior frequência.


Aliás, queria deixar registrado que a Meryl Streep está cada vez melhor.
Pra quem não curte essas coisas de cozinha ou gosta de filmes mas agitados, cults ou descolados, não recomendo, acho que vai ser chato. Mas me senti próxima delas por esses dois motivos.

Saindo do cinema, o Luis Fernando já havia acabado com a sua deliciosa pipoca e eu estava morrendo de fome depois de ver e pensar em tantas comidas e na escola francesa de cozinha.
Fui comer sushi. Nada melhor quando se está faminto do que uma comida crua, fresca e sem manteiga.


segunda-feira, 16 de novembro de 2009

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Hoje Nelson

Nada melhor para uma sexta fria em Porto Alegre do que um texto no Nelson.
Nada melhor para uma sexta fria em Porto Alegre do que um Nelson falando de amor.



SER PARA SEMPRE FIEL

(Crônica retirada do livro O Óbvio Ululante - primeiras confissões, Ed. Companhia das Letras, 1993)

Em capítulo recente falei de Adolpho Bloch, não o atual, o milionário de Manchete. Não. O fundador de um império gráfico interessa menos. O grande Adolpho é o de Pereira Nunes, de pé descalço e calça furada. Era menino e passava fome. Hoje ele muda de automóvel como muda de camisa. Todo o dia sai om um carro novo. E aqui está o suave milagre. O menino da fome não morreu em Adolpho Bloch, e repito: - Adolpho Bloch não o matou.

Não só não matou e digo mais: - esta criança exânime e obsessiva há de salvá-lo. De vez em quando, resolvendo negócios nababescos, o Adolpho começa a tremer de humildade. Na porta, à sua espera, está o automóvel bonito como um elefante de rajá. E, apesar disso, Adolpho torna-se pungente, plangente. Ninguém entende, mas explico: - é o menino da fome que começa a doer em suas entranhas.

Mas falei em fome e, por associação penso em d. Hélder (ah, esse homem fatal). Contei em nota recente a entrevista do querido arcebispo na televisão pernambucana. O locutor fez-lhe a pergunta melíflua: - "padre, o que o senhor acha do amor livre?". O Nordeste em peso tremeu. D. Hélder faz um risonho suspense e fala: - "Por que tratar de amor livre se o Nordeste passa fome?".

Assim falou o grande arcebispo. Mas o Hélio Pellegrino, que soube do episódio, comentava comigo: - " Ah, d. Hélder perdeu a chance de uma resposta genial". Se o Hélio Pellegrino lá estivesse havia de responder, na hora, em cima da pergunta: - " Oamor livre é a fome!". Aqui entro para observar: - claro que a fome do Nordeste é muito mais promocional.

E porque faz as relações pública da fome nordestina, d. Hélder despreza ou esquece as outras formas de fome do homem. Pois o amor livre, como diz o Hélio Pellegrino, é uma delas, e insisto, umas das mais cruéis, das mais hediondas. Na minha infância havia um rapaz que era o escândalo de toda a Aldeia Campista.

Chamava-se Meireles. Meireles ou Marcondes? Não, não. Era Meireles mesmo. Pois o Meireles tinha uma namorada em cada esquina, noivas e esposas por toda a cidade. Muito já insinuavam o vaticínio: - "Qualquer dia dão-lhe um tiro!". E o Meireles foi, talvez o primeiro sujeito que ouviu falar em amor livre. Certa vez houve m festa na vizinhança; era batizado ou aniversário, não me lembro mais.

E o Meireles (ou seria Marcondes?), o Meireles estava lá e tomou conta da festa. Cercado de mocinhas, de senhoras, contou a própria vida. Confirmou que tinha uma paixão, ou várias, uma em cada bairro. Alguém lhe perguntou se não tinha vergonha. Abriu o riso: "Vergonha teria de ser homem de uma mulher só!". Naquele tempo as mulheres usavam leque (o movimento lépido ou lento do leque era de uma delicada voluptuosidade). E as presentes abanavam-se com mais angústia.

(Depois se soube qe o Meireles tinha não só namoradas, como filhos por toda a cidade.) No fundo, no fundo, a audiência estava fascinada com esse descaro monumental. Antes de sair, ainda disse: - "Qualquer um pode gostar de quinhentas ao mesmo tempo". Eu estava no aniversário, comendo mãe-benta. O Meireles foi, talvez, primeiro cínico que conheci na vida real.

Depois que o Meireles saiu, um vizinho de olho grande e triste disse apenas: -"É um canalha!". Aí está um ponto de exclamação que realmente o velho não usou. Dissera "canalha"sem ira, um "canalha" que saiu apenas informativo. Quanto a mim, nos meus sete anos, exatamente sete anos, tive uma náusea adulta.

Pode parecer que eu esteja aqui retocando, valorizando uma reação infantil. Repito que me veio uma ânsia, quase um vômito ético. Desinteressei-me das mães-bentas; e vim pra casa com vontade de morrer. Exatamente: -vontade de morrer. Eu não entendia um Meireles. Nasceu comigo o horror de trair. Eu queria ser fiel e que todos fossem fiéis. Amar a mesma, sempre. E, mais tarde, quando comecei a namorar, teria pena, vergonha de dançar, simplesmente dançar com outra. Em toda a minha infância, a minha mais doce utopia era morrer com o ser amado.

Volto ao Meireles. Nos fundos da nossa casa havia uma farmácia ( ainda hoje o cheiro de remédio, de certas pomadas, deflagra em mim todo um processo regressivo. É a farmácia que não morre. Em seu lugar levantaram um edifício. Mas em mim ela não morre). E uma tarde o Meireles entra lá. Ouvia-se a sua gargalhada no fim da rua. Contou anedotas. E em dado momento diz que estava sendo pai outra vez. Alguém perguntou: - "Quantos?". Ele pensou um momento e resmungou: - "Sei lá!".
E de repente o Meireles dis para os três ou quatro que estavam na farmácia: - "Olha o que eu vou fazer". À vista de todos, puxou o revólver. Houve protestos: - "Vira isso para lá!". Pediram: - " Não brinca!". E então, pálido mas sereno, ele introduziu o cano na boca. Ninguém dizia nada. Puxou o gatilho.

Eu estava em casa e ouvi o tiro. Horas depois já se montava todo um folclore sobre o suicídio. Segundo uns, pulou um olho; outros viram voar o tampo da cabeça; e se disse também que o sangue esguichara na cara de uma testemunha. Lembro-me que o tal senhor triste, que já o chamara de canalha, andou dizendo: - "Quem devia ter dado o tiro era um pai, um marido, um irmão". "Morte instantânea", disse o jornal. Quando a ambulância chegou, estava deitado os sapatos tortos de cadáver.

Hoje, na minha casa, penso de vez em quando no Meireles. O gesto suicida parece tornar-se no mais transparente dos mistérios. Na época toda a Aldeia Campista perguntava: - "Por quê?". Ninguém entendia. Mas o Meireles está diante de mim, tão nítido. Morreu do amor livre e, pois, de falta de amor. Tudo é falta de amor. O câncer no seio ou qualquer outra forma de câncer. É falta de amor. As lesões do sentimento. A crueldade. Tudo, tudo falta de amor.

E o Meireles separou o amor e o sexo. E sempre há os que apodreçam em vida porque separaram o sexo e o amor. A toda hora esbarramos com sujeitos de praticam a variedade sexual. Eles vão morrer na mais fria, lívida, espantosa solidão. Por vezes, de madrugada começo a jogar com as palavras. "Quem tem uma tem todas. Quem tem todas não tem ninguém." Depois do suicídio andaram fazendo na rua Alegre um censo das mulheres de Meireles. Falou-se em "duzentas". Porque teve duzentas, o Meireles morreu virgem como um solteirona de García Lorca.



[2/1/1968]