- Lu, podes vir cozinhar na minha casa, sábado, pra dez pessoas?
Sem dúvida isso é uma das oportunidades mais interessantes para pessoas como eu e a Lu que gostamos de servir bem e ter liberdade de criar.
A pensar no cardápio, nunca me contento e vou logo partindo pros conceitos abstratos que surgem na minha cabeça, para as quais a Lu dificilmente não torce o nariz:
- Quem sabe um jantar thai, Lu?
- Acho ótimo, mas será que todos os convidados gostam?
:/
Às vezes fico intediada diante do gosto comum e causa urticárias no cérebro pensar como as pessoas são conservadoras e engessadas a ponto que quererem sempre comer o mesmo tipo de comida, ainda quando têm a oportunidade de experimentar - essa palavra vem me perseguindo há anos...
Chutando o balde pra longe, dei uma sugestão como se fosse a única oportunidade de me salvar da cadeira elétrica:
- Quero cozinhar polvo!
Eu sou absolutamente apaixonada pela carne branca desse bicho. A primeira vez que vi um polvo, foi uma coisa de amor incrível. Como alguém pode sentir essa sensação por um ser viscoso e nem um pouco tátil, repleto de ventosas de diversos tamanhos cobrindo o seu corpo, virado em cabeça e tantáculos, e que ainda por cima solta um desagradável líquido negro?
Não sei. Sei que foi amor à primeira garfada e depois disso, meu reino por um polvo!
Aí comecei a pensar no que poderia acompanhar um polvo...
Queria fazê-lo lentamente no azeite de oliva, depois de tê-lo cozido numa panela com água, até acertar o ponto que eu queria, nem borracha, nem farinha amanteigada.
Era quase um confit o "lugar" onde eu queria chegar.
Foi então que eu lembrei dos toques sutis que tive durante um mês com a adorável chef Helena Rizzo no Maní (http://www.restaurantemani.com.br/).
Com tantas inspirações "helenísticas", decidi parafrasear o delicioso purê de batata com wasabi que ela serve no prato Hamburguer, mas da minha maneira.
Então, eu e a Lu conversando, chegamos a conclusão de que a entrada seria um carpaccio de beterraba sobre marmelada de cebola, redução de balsâmico e lascas de parmesão: ou seja, um prato frio. Nada mais agradável do que antes de ir direto ao finalmente quente, receber uma entrada morna! Ora, ora, Eureka!! Era o POLVO com purê de batata com wasabi, levemente tépido (adoro essa palavra).
Eu já havia conseguido o que eu queria, que era convencer a Lu a sugerir um polvo como primeiro prato. Ela ligou pra cliente:
- Suzana, estou pensando em um carpaccio de beterraba, assim, assim... e um polvo. Gostam?
Estava choramingando pelos cantos quando ela me deu a notícia que me fez ganhar o dia: íamos cozinhar polvo!
EBA!!!
Bem, eu sei que estou prestando demais atenção a um ser primitivo, cefalópode, mas a minha paixão por ele fazia verter mais o que água na boca, água nos olhos.
Com o cardápio definido, a cliente pediu que o outro prato fosse cordeiro. Tudo bem, dessa vez me rendi às tradições, eu estava louca era pelo octópode, de resto, eu serviria até risoto de chuchu sem parmesão se ela pedisse.
Fomos às compras, tudo lindo maravilhoso, eu sonhando com o sabor... "depois de cozinhá-lo, numa forma deitado no azeite de oliva... coentro, gengibre, pimentas... uhm... no forno ou no fogão? ..." Fui subitamente retirada do meu estado de nirvana com a Lu dizendo que não havia polvo nos supermercados da cidade. Bem, isso não é problema, penso eu, vamos ao Mercado Público, não é? Não é. Nada do meu amigo feioso mais uma vez.
Comecei e me deseperar. Será que o meu deleite não ia ser realizado pela falta de proveduras de frutos do mar nessa cidade Alegre?? Buá buá buá! A minha cidade estava ficando cinza...
Uma São Silvestre e muitas ligações depois, descobrimos um lugar que vendia tentáculos. Só os tentáculos. Uhm, pra mim já parece ótimo.
Chegamos lá, um lugar perto do Beira-Rio, já estava começando a sentir náuseas, quando de repente, ao sair do carro percebemos: as duas tínhamos esquecido as carteiras em casa. Quase não consegui acreditar, parecia que o polvo estava fugindo de mim. Mesmo sem nenhum tostão, entramos e escolhemos nossos pacotes cheios de tentáculos, e deixamos encomendados para um motoboy entregar no dia seguinte.
Dormi aquela noite pensando em lindas "pernas" de polvo.
Era sábado, o dia do jantar e eu acordei pensando se ia demorar muito para que chegasse o cara de moto. Acredito que estou ficando cada vez mais obcecada por esse bicho. Queria por que queria que ele já estivesse ali, e pensar em tirar do saco, descongelar suas partes moles, limpar uma por uma das suas ventosas me dava uma sensação extrema de bem estar. (?)
Achei que dois pacote com dez "pernas" em cada ia ser pouco. Liguei e pedi mais um, afinal, para mim, polvo nunca é demais.
Bateram na campainha. Era ele. :D
Fiquei eufórica, louca para metê-lo na panela com limão e depois temperá-lo como eu havia imaginado.
Bem, pra encurtar a história, o nosso jantar todo ficou lindo, até o cordeiro que eu mesma assei e fiquei virando com todo o carinho - acho que na tentativa de não deixar transparecer para eles, os cordeiros que fariam parte do prato principal, que eu estava dando mais importância ao ser com as pernas na cabeça - ficou interessantíssimo acompanhado de figos recheados e uma musseline de grão-de-bico.
Chegamos na casa da Suzana e após tudo preparado, eu fiquei sabendo que alguns comensais, incluindo a dona da casa não gostavam de polvo! Eu quase não acreditei. Ele estava tão lindo naquele tom roxo, combinando com a minha touca, também roxa, embebido por azeite de oliva deliciosamente aromatizado com tanto carinho... sniiiff...
Mas tudo bem, pensei, buscando em mim a confiança que o polvo havia me dado. Tínhamos passado por tantas coisas, não ia ser agora que logo eu ia decepcioná-lo. Não mesmo.
Servi as quenelles tépidas de batata com wasabi, arrumei delicadamente cada tentáculo no prato, cuidando para que sua linda e frágil "roupa" roxa de festa não fosse maculada por uma pinça de carnes, e o tomei nas mãos, desejando que aquelas pessoas o soubessem valorizar assim como eu sabia, despejando sobre cada um deles um pouco de flor de sal, para realçar o sabor.
Esperançosa, ajeitei cada cubinho de azeitona, cada tomatinho-uva confit de ambos os lados do polvo, verti sobre o prato o azeite de manjericão, decorei com as folhinhas de coentro e mais manjericão, e por cima do purê com wasabi, um filete de sel rouge que a Lu trouxe da França.
Aquilo havia sido esperado durante dias e noites, eu sonhara com o polvo, ali, sendo um figurante na noite do cordeiro protagonista, cercado de azeitonas negras, aromas e sabores.
Um verdadeiro delírio. E eu suando frio a pensar que podia alguém deixar de comer o polvo tão lindo.
Quando a menina que havia sido contratada para fazer o serviço abriu a porta que dava para a sala de jantar, subitamente tive uma vertigem e ouvi vozes elogiando o prato.
Não tive certeza se era uma alucinação, e perguntei à ela o que estavam achando os comensais. Para a minha surpresa e deleite, todos estavam amando, e tinha gente que queria repetir.
Quase pulei de felicidade, o polvo finalmente havia sido reconhecido!!!
Senti como se eu fosse parte daqueles lindos tentáculos apreciados com um pinot noir que estava sendo servido.
O jantar todo correu bem, e quando voltaram os pratos, eu soube que até a dona da casa havia gostado muito do bicho estranho.
Voltei pra casa me sentindo feliz da vida, com a certeza de tinha acertado em sugerir quebrar os velhos hábitos e de ter dado ao polvo um novo status e uma nova chance de se sentir gostado.